Em meio a uma das mais graves crises sanitárias mundiais, o presidente da República, Jair Bolsonaro, e o ministro da Economia, Paulo Guedes, assinaram um decreto com a intenção de privatizar as unidades básicas de saúde (UBS), porta de entrada da população brasileira no Sistema Único de Saúde (SUS). A norma foi publicada nessa terça-feira (27), no Diário Oficial da União (DOU) – veja íntegra ao final do texto.
A norma autoriza a elaboração de projetos, dentro da política de fomento ao setor de atenção primária à saúde, para a privatização da construção, modernização e operação das UBS, no Distrito Federal e municípios de todo o país. O Ministério da Saúde foi excluído do decreto e, segundo o governo, a seleção dos projetos pilotos, resultantes do estudo, será responsabilidade do Ministério da Economia.
Atualmente, o Brasil conta com cerca de 42,8 mil unidades básicas de saúde, responsáveis, por exemplo, pelo primeiro atendimento em casos de suspeita de Covid-19 e pelos programas de vacinação. Entre os principais serviços oferecidos pelas UBS estão consultas médicas, inalações, injeções, curativos, vacinas, coleta de exames laboratoriais, tratamento odontológico, encaminhamentos para outras especialidades clínicas e fornecimento de medicação básica.
A coordenadora do Grupo de Trabalho de Seguridade Social e Assuntos de Aposentadoria do ANDES-SN (GTSSA), Elizabeth Barbosa, explica que, com o decreto, o governo busca intensificar a participação do setor privado na atenção primária em saúde, em um momento, inclusive, de desaceleração no mercado de planos de saúde, em parte devido à crise econômica.
A diretora do Sindicato Nacional lembra que os ataques à Saúde Pública não são recentes, e algumas medidas pavimentaram esse movimento do governo. "A gente já teve, em 2019, a criação do Previne Brasil, através da portaria 2979/2019 do Ministério da Saúde. O Previne Brasil é a realocação dos recursos federais para esse nível de atenção primária à saúde. E, com esse decreto de agora, fica escancarada toda a possibilidade de privatização do setor primário em saúde, que é a porta de entrada do SUS", explica.
Outra medida de ataque à saúde pública, segundo a docente, foi a modificação, em 2017, da Política Nacional de Atenção Primária (Pnap), que reduziu o quantitativo de agentes de saúde e, ainda, tirou legitimidade e investimento dessa estratégia de atuação das equipes de saúde da família por territórios.
"O desmonte já vem ocorrendo há muito tempo. E, agora, ele fica muito mais concreto, porque essa proposta de parcerias com iniciativa privada [contida no decreto] é, na realidade, de aniquilar o SUS. É acabar com a universalidade e a perspectiva pública e gratuita do sistema de saúde. E é importante a gente entender essa medida, somada a outras, por exemplo, à Emenda Constitucional 95, de 2016, e à abertura do [mercado brasileiro] para o capital estrangeiro, em 2015, a partir de quando vários planos internacionais de saúde incorporaram planos nacionais", explica.
Elizabeth ressalta que o SUS é um modelo reconhecido e aplaudido mundialmente, devido à sua rede de atenção à saúde, em grande parte estruturada através de serviços e políticas implementas nas UBS, como as estratégias de saúde da família, com o trabalho por territórios, e a atuação de equipes compostas por vários profissionais, em especial os agentes de saúde, que fazem a ponte entre as UBS e as famílias atendidas.
"É um modelo que é reconhecido mundialmente, porque exatamente atua nessa perspectiva de estratégias. É no trabalho por territórios, com as equipes de saúde da família, que se consegue chegar às populações mais vulneráveis, que você consegue fazer prevenção de doenças, promoção em saúde. É um setor crucial para toda a estruturação do SUS e cuidado da população. E é nesse setor, exatamente, que o governo vai apostar na privatização", critica.
A coordenadora do GTSSA do ANDES-SN reforça que é importante entender porque esse ataque ocorre nesse momento, em meio à pandemia da Covid-19. Segundo ela, o aumento no número de desempregados, as reduções salariais e a crise econômica tiveram impacto no mercado de planos de saúde.
"Esse mercado de planos de saúde está em desaceleração, e isso [a privatização das UBS] é um boom em um mercado de capital bastante interessante. Existem unidades básicas de saúde em todo o país, imagina isso tudo ser privatizado. O capital tá cobrando e o governo está entregando", lamenta.
Elizabeth lembra ainda que a privatização e terceirização de mão de obra que irão decorrer desse processo são elementos que constam na reforma administrativa, que mesmo antes de ser votada, já vem sendo implementada por etapas, através de mecanismos como decretos e portarias, em vários setores.
"Hoje, temos cerca de 157 mil mortes no Brasil, e o governo, em vez de fazer investimento na atenção primária, que é a porta de entrada do SUS, leva essa porta de entrada para a perspectiva privatizante. É um absurdo. Esse é um governo genocida. Estamos perdendo a maior conquista que tivemos na saúde até hoje. É o maior retrocesso que estamos vivendo. Os ataques à saúde e à educação não param. É a destruição do que é público e é de direito da população", rechaça.
Privatizações na Saúde são desastrosas e abrem caminho para corrupção
Historicamente, o ANDES-SN se posiciona em defesa do Sistema Único de Saúde e contra a privatização da saúde pública e dos demais direitos sociais, que devem ser garantidos pelo Estado, conforme prevê a Constituição de 1988.
Diversas tentativas dos governos estaduais e municipais de estabelecer parcerias público privadas na área da Saúde e terceirizar a prestação de serviços essenciais foram desastrosas e abriram espaço para aprofundar a corrupção e desvio de recursos públicos.
Exemplos recentes são as denúncias contra as organizações sociais no estado do Rio de Janeiro. No município carioca, um levantamento do jornal O Globo em 2016 apontou que, das dez OS em atuação no município, oito estavam sob investigação do Ministério Público e do Tribunal de Contas por diversas irregularidades como desvio de recursos e superfaturamento de compras de insumos. Em setembro desse ano, o governador Wilson Witzel (PSC) foi afastado após denúncias de corrupção envolvendo organizações sociais contratadas pelo governo estadual para gerir unidades e serviços de saúde.
De acordo com denúncia do Ministério Público Federal (MPF) pelo menos cinco OS contribuíram para a "caixinha da propina" do governo Witzel. O MPF afirma que, em seis meses, essa "caixinha" desviou R$ 50 milhões da Saúde, a fim de garantir os contratos com o governo estadual. Enquanto isso, trabalhadores da Saúde, que estão na linha de frente do combate à pandemia do novo coronavírus, estão com salários atrasados.
Veja a íntegra do decreto:
"DECRETO Nº 10.530, DE 26 DE OUTUBRO DE 2020
Dispõe sobre a qualificação da política de fomento ao setor de atenção primária à saúde no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República, para fins de elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso das atribuições que lhe confere o art. 84,caput, incisos IV e VI, alínea "a", da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 4º da Lei nº 13.334, de 13 de setembro de 2016, e na Resolução nº 95, de 19 de novembro de 2019, do Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República,
D E C R E T A:
Art. 1º Fica qualificada, no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República - PPI, a política de fomento ao setor de atenção primária à saúde, para fins de elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada para a construção, a modernização e a operação de Unidades Básicas de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Parágrafo único. Os estudos de que trata o caput terão a finalidade inicial de estruturação de projetos pilotos, cuja seleção será estabelecida em ato da Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimentos do Ministério da Economia.
Art. 2º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 26 de outubro de 2020; 199º da Independência e 132º da República.
JAIR MESSIAS BOLSONARO
Paulo Guedes"
* Com informações de O Globo