Apesar da derrota de Jair Bolsonaro nas urnas em 2022, houve um avanço de representações da extrema direita tanto no Congresso Nacional, quanto em assembleias estaduais. Agora, as eleições municipais, que ocorrem em todo o país em 6 de outubro, podem representar um novo avanço das forças reacionárias no país.
Candidatos bolsonaristas lideram as pesquisas em pelo menos 10 capitais brasileiras, além de diversos outros municípios. Para avaliar esse cenário e apontar alternativas, o InformANDES conversou com Carlos Zacarias, professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Confira:
Como o senhor avalia o cenário erosão da democracia, com o esvaziamento do debate político e a ascensão de candidatos de extrema direita em diversos países, inclusive no Brasil?
Carlos Zacarias: A erosão da democracia é um dado concreto, que já vem de alguns anos, em alguns países da Europa, nos Estados Unidos e na América Latina. No Brasil, ela acontece desde que os movimentos sociais e a esquerda perderam as ruas, em 2013. A partir de 2014, com a ofensiva desencadeada pela Lava Jato e pelas formas de criminalização da política que nós todos assistimos, a erosão da democracia conduziu o país à beira do caos, com a eleição de um político absolutamente inexpressivo e desimportante como Jair Bolsonaro, alguém que tinha um discurso nitidamente autoritário e com características fascistas.
Contudo, é preciso qualificarmos a democracia. Falamos de democracia, em abstrato, porque todos nós, do campo progressista, do campo da esquerda, entendemos a importância de defender a democracia como ela existe, desde que a transição da ditadura à democracia se consolidou, primeiro com a eleição pelo Colégio Eleitoral de um presidente civil, depois com a Constituição de 1988 e aquilo que se configurou como nova República. Com todos os defeitos que essa “democracia” tem - e eu coloco entre aspas -, nós precisamos dizer que ela é absolutamente insuficiente, apesar de indispensável, para as necessidades do Brasil.
Se a gente não entende que essa forma de democracia representativa liberal-burguesa - com suas características e histórias específicas -, não tem sido capaz de oferecer respostas às necessidades da classe trabalhadora, dos amplos setores do povo, dos explorados e os oprimidos, nós não compreendemos o porquê de hoje as pessoas pobres, aqueles que foram promovidos à chamada classe média, setores que ascenderam por opção dos governos petistas de inclusão através do consumo, votarem, escolherem, optarem por sufragar esses que atacam a democracia.
Nós, da esquerda, perdemos a radicalidade, perdemos a característica, que tinha sido muito cara quando nós começamos a construir essa democracia, de sermos nós os antissistêmicos, os anti-establishments, os anti-status quo. E quem ocupou esse espaço foi a extrema direita, com seu discurso de ataque. E a extrema direita, nesse sentido, passa por ser a alternativa para aqueles que, inconformados, buscam alguma coisa que seja diferente dessa democracia incapaz de ceder aquilo que almejam.
Candidatos bolsonaristas lideram as pesquisas em pelo menos 10 capitais brasileiras, além de diversos outros municípios. Se o resultado se confirmar nas urnas, qual impacto essas eleições para a democracia e para o avanço do neofascimo no Brasil?
Carlos Zacarias: Primeiro, é preciso dizer que o bolsonarismo não é uma pessoa, não é Bolsonaro, mas é um movimento cujas características vão se revelando na medida em que a política vai se convertendo nessa antipolítica, que implica em que discursos extremistas, fascistas, que se apropriam de aspectos disruptivos que eram típicos da esquerda. O que eu estou dizendo é que o bolsonarismo existe antes de Bolsonaro e permanece para além de Bolsonaro, o que pode ser constatado pelo fato de que o próprio Bolsonaro não consegue, na maior parte dos casos, transferir votos. Os candidatos que são tidos como bolsonaristas apenas em alguns casos reivindicam diretamente Bolsonaro, em algumas cidades onde o Bolsonaro é uma figura popular. Por exemplo São Paulo, em que o Bolsonaro às vezes é escondido, às vezes é demonstrado por Ricardo Nunes. Ou seja, o Bolsonaro é utilizado pelo atual prefeito, que é candidato à reeleição, na medida das necessidades e não em função de sua adesão ideológica pura e simples a Bolsonaro. Também em São Paulo nós temos uma outra candidatura, que não é uma candidatura do bolsonarismo propriamente dita, mas está muito identificada com o bolsonarismo, até mais do que a de Ricardo Nunes, que é a de Pablo Marçal, o que demonstra que o bolsonarismo sobrevive para além de Bolsonaro. Isso não quer dizer, contudo, que a gente não deva torcer e não deva se mobilizar para que Bolsonaro vá preso.
A condição para derrotarmos o bolsonarismo é também a prisão da figura que melhor o representa, que é a figura que dá nome ao fenômeno que é o próprio Bolsonaro. Mas, acreditar que só a prisão de Bolsonaro e só o fato de ele ter perdido a eleição significam que o bolsonarismo desaparece, já constatamos que não é verdadeiro. Ou seja, o bolsonarismo permanece, vai continuar nos assombrando, vai continuar importando para a corrosão da democracia.
De outro lado, nós temos também que observar que há figuras ligadas ao partido de Bolsonaro que não são necessariamente bolsonaristas. Então, há uma confusão, ou aquilo que alguns estudiosos apontam dessa direita transitando, sem uma definição exata para fazer essa caracterização. Ou seja, o PL, o Partido Liberal, que é um partido que já existia antes do bolsonarismo, esteve na vice-presidência da República nos dois mandatos de Lula e que envolveu boa parte do seu staff, inclusive a figura que agora também é presidente do partido, que é Valdemar da Costa Netto. É um partido com características fisiológicas, que não necessariamente conduzem os seus membros à fascistização.
A fascistização é uma possibilidade quando ela se aponta como uma realidade no plano nacional. Então, quando Bolsonaro governa, o processo de fascistização dos setores fisiológicos é mais acelerado e que incorpora mais gente. Com a derrota de Bolsonaro, esse processo de fascistização não é necessariamente interditado, mas sofre um revés, o que significa que esses setores fisiológicos podem aderir ao bolsonarismo, ao fascismo portanto, mais ou menos conforme as suas necessidades, os seus cálculos eleitorais, a sua aproximação ou afastamento do governo do presidente Lula.
Então, o que acontece é que nós estamos em um processo de transição. Essas forças não estão ainda consolidadas e, nesse sentido, a nossa capacidade de caracterizar e definir o que pode ser vitória e o que pode ser derrota passa por muitas nuances, muitos senões, muitos aspectos que a gente precisa compreender melhor. Dito isso, eu afirmo que mesmo com esses senões todos, a extrema direita deve sair fortalecida dessa eleição. Não porque a política nacional, aquilo que se chama de polarização, vai incidir mais diretamente nas questões locais, mas pelo fato de que as pessoas estão capturadas por outras mídias, por outras formas de discurso que hoje ocupam o imaginário político de uma forma absolutamente distinta do que existia há alguns anos atrás. Ou seja, nós temos candidaturas que vão ser facilmente eleitas para a vereança simplesmente pelo fato de que são figuras conhecidas e que usam as redes sociais, com grande visibilidade, para produzir os seus discursos, que geram engajamento e capturam a economia da atenção. Nesse sentido, a gente vai ter efetivamente um país saindo mais à direita por essas características que eu aponto.
É possível barrar e reverter esse cenário? Qual o papel dos sindicatos e dos movimentos sociais nesse processo?
Carlos Zacarias: Não é apenas possível, como é necessário, barrar e reverter esse cenário. Eu não creio que esse cenário vai ser revertido de hoje até a eleição de outubro. Entretanto, é urgente que os movimentos sociais se organizem, reajustem a linha de conduta em relação a um governo federal, que todos nós nos juntamos para eleger, mas que já demonstrou as suas limitações, a sua dificuldade de ser o condutor desse processo de enfrentamento ao fascismo, ao bolsonarismo.
Os movimentos sociais precisam readequar, reajustar suas linhas de atuação para que não fiquem a reboque. Não é possível derrotar o fascismo a não ser pela mobilização, pela ocupação das ruas, pelas formas que habitualmente, historicamente, permitiram aos trabalhadores construírem sua força como classe, como movimento, como ponto de ataque, e às vezes de defesa, diante de elementos que querem a sua destruição como ideia, como todo o simbolismo que representa, e também a sua destruição física. Nesse sentido, eu acho que os sindicatos e os movimentos sociais precisam abraçar a ideia de que eles devem se mover no espírito de construir movimentos pela base, que abarquem as suas diversas categorias e que essas categorias precisam estar organizadas, terem a firmeza e a plena consciência de que uma greve, por exemplo, não contribui para derrotar o governo Lula. Ao contrário, contribui para fortalecer as alternativas que impliquem na destruição do bolsonarismo.
Se a gente acreditar, a partir do pressuposto que toda mobilização, toda greve vai se confrontar com o governo federal ou com os governos estaduais ou com os governos municipais que são liderados pela esquerda, nós vamos estar entregando as ruas para a extrema direita. E nós temos a experiência recente que demonstra que desocupar as ruas é deixar o terreno livre para que a extrema direita se organize, ocupe e apareça como disruptiva, como anti-establishment. O que as pessoas querem são alternativas ao que o capitalismo não foi capaz de lhes oferecer.
E essa alternativa tem que passar por aquilo que, historicamente, os trabalhadores construíram como a possibilidade de uma sociedade pós-capitalista, de uma sociedade que não esteja marcada e prisioneira das formas de exploração e de opressão que o capitalismo importa. E, portanto, eu creio que a nossa tarefa principal, a tarefa dos sindicatos, das centrais sindicais, dos movimentos sociais, é se organizar e ocupar as ruas para enfrentar o fascismo e dizer aos governos, que se imaginam nossos aliados, que não há outra forma de fazer esse enfrentamento senão nesse território, que não é o território da institucionalidade apenas. Não são as instituições que vão derrotar o fascismo, mas sim os trabalhadores organizados nos seus sindicatos, nos seus movimentos sociais e nos seus partidos.