Os impactos das intervenções nas comunidades acadêmicas e a necessidade de acabar com o processo da lista tríplice para a escolha de reitores e reitoras nas instituições de ensino superior (IES) pública foram debatidos na terça-feira (4), no II Encontro Nacional das Universidades sob Intervenções. O evento foi realizado de forma híbrida na sede do ANDES-SN em Brasília (DF) e também com participações pela internet. A atividade marcou o Dia Nacional de Luta e Mobilização contra as Intervenções e pela Autonomia e Democracia nas Universidades, Institutos Federais e Cefets.
Durante o governo de Jair Bolsonaro, mais de 20 universidades tiveram sua autonomia e democracia atacadas, com a nomeação de gestores e gestoras que não foram escolhidos pela comunidade acadêmica. Em alguns casos, os nomes indicados não constavam nem na lista tríplice encaminhada ao MEC.
Pela manhã, na mesa de abertura, Marcel Parentoni, reitor eleito e não-empossado da Universidade Federal de Itajubá (Unifei), falou da unidade que se formou entre as comunidades impactadas pelas intervenções e entre aqueles e aquelas eleitos e não-empossados. Ele ressaltou a importância de buscar reparação e a restituição da democracia interna, na defesa incessante da autonomia das universidades. “Jamais podemos aceitar que haja uma normalização do que ocorreu nessas universidades”, ressaltou.
Marcelino Rodrigues, técnico-administrativo da Universidade Federal da Paraíba e dirigente da Fasubra, relatou a realidade na sua instituição. Lá, o reitor interventor teve apenas 55 dos votos da comunidade acadêmica e ainda assim foi empossado por Bolsonaro. “Para negar a ciência, foi necessário colocar à frente das universidades – que é onde se produz conhecimento e ciência - pesquisadores que abraçassem o perfil ideológico e negacionista que estava por trás das nomeações, embora muitos desses nomeados sejam pesquisadores com projetos nas universidades”, afirmou.
Em sua fala, a presidenta do ANDES-SN, Rivânia Moura, fez um resgate de toda a luta empreendida pelo sindicato, desde dezembro de 2020, contra as intervenções, em conjunto com as reitoras e os reitores eleitos e não-empossados. “É importante registrar esse percurso para que a gente possa entender toda a luta que vem sendo travada em defesa da democracia e autonomia nas nossas universidades, e na nossa sociedade”, pontuou. Ela lembrou que as intervenções são incompatíveis com a democracia defendida pelo Sindicato Nacional e pelo campo progressista. “Depois desse amplo processo em defesa da democracia para eleger um novo governo, não podemos permitir que as intervenções continuem”, acrescentou.
Enfrentamentos e realidade
Na sequência, foi realizado o painel “Enfrentamentos e realidade das universidades sob intervenção”, com relatos das seções sindicais. A atividade foi coordenada por Mario Mariano Ruiz, 1º vice-presidente da Regional Leste e coordenador do Setor das Ifes do Sindicato.
As diversas manifestações retrataram a realidade de perseguição, autoritarismo e desrespeito aos estatutos e à democracia interna nas instituições. Várias falas apontaram a necessidade de que essa luta seja encampada por toda a categoria docente e também pela sociedade, uma vez que em muitos locais, interventores e interventoras têm usado as universidades para favores políticos e apoio a atos antidemocráticos como os ocorridos em 8 de janeiro. A situação tem também aprofundado o adoecimento da categoria docente.
“Esse momento foi fundamental para recolhermos subsídios para atualizar as informações dos nossos dossiês. O panorama trazido com os relatos é muito importante para dar sequência à campanha contra as intervenções, conforme deliberação congressual do nosso Sindicato”, comentou Mariano.
Diálogo com parlamentares
A tarde foi dedicada ao diálogo com parlamentares parceiros e parceiras do ANDES-SN na luta contra as intervenções e pelo fim da lista tríplice. Participaram Tarcísio Motta (PSol/RJ), que recebeu o anteprojeto elaborado pela assessoria jurídica do ANDES-SN, Fernanda Melchiona (PSol/RS) e as assessorias de Chico Alencar (PSol/RJ) e de Ana Pimentel (PT/MG).
Foi detalhado o processo de tramitação da proposta no Congresso Nacional, que deverá ser apresentada pela Bancada do PSol, em conjunto com deputados e deputadas de outros partidos que queiram apoiar a proposta. De acordo com Tarcísio Motta, o PL deverá focar no fim da lista tríplice e na garantida de eleições diretas, paritárias, com voto uninominal, para facilitar a sua tramitação. Todos os mandatos colocaram-se à disposição do ANDES-SN e ressaltaram avaliar que o momento é propício para a aprovação do projeto. No entanto, destacaram ser necessária ampla mobilização das entidades do setor da Educação e da sociedade para pressionar o Congresso Nacional.
De acordo com Rivânia Moura, que fez parte da coordenação da mesa, a participação de parlamentares, que já assumiram o compromisso com o ANDES-SN e sua bandeira de luta pelo fim da lista tríplice, foi de suma importância.
“Nós temos justificavas concretas para não permanecemos com esse instrumento da lista tríplice porque ele fragiliza a nossa autonomia universitária. Foi importante ouvir parlamentares assumindo esse compromisso. Ressaltamos que o
PL precisa estar alinhado com as nossas deliberações e com o acúmulo da categoria, mas que precisa também ser debatido na Comissão de Educação e tramitar dentro do Congresso Nacional, para que possamos acabar com esse instrumento, entulho da ditadura, que trouxe nesse último período o retrato das intervenções, do autoritarismo, do negacionismo para dentro das nossas instituições de ensino superior”, afirmou a presidenta do ANDES-SN.
Democracia e autonomia
Na última mesa, que debateu “O fim da lista tríplice: democracia e autonomia das Ifes”, Roberto Leher docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-presidente do ANDES-SN, fez um resgate histórico sobre o processo de escolha e nomeação de reitores e reitoras nas instituições de ensino superior públicas no país.
Segundo Leher, as universidades públicas brasileiras se consolidaram como instituições de pesquisa no período da ditadura empresarial-miliar e isso era incompatível com qualquer possibilidade de democracia. Dessa forma, foram criados mecanismos, como a Lei 5540 de 1968, para intervir na escolha de dirigentes.
No entanto, mesmo antes do golpe de 1964, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1961, já previa a nomeação por lista tríplice pelo presidente da República. Porém, essa questão não estava colocada na agenda política de uma maneira mais impetuosa.
“Na Constituição Federal de 1988 constatamos que o teor da Carta Magna, no seu artigo 207, tinha uma concepção brilhante de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial. Portanto, na Constituição isso já ficou materializado e não há espaço para nenhuma condicionante”, disse.
Contudo, no governo de Fernando Henrique Cardoso, foi sancionada a lei 9192/1995, que estabeleceu novamente lista tríplice, e essa mesma limitação se manteve durante os governos petistas de Lula e Dilma. “Vimos como isso tornou as nossas universidades vulneráveis no governo Bolsonaro. Tivemos um patamar de intervenções que foi o maior desde a ditadura, de uma maneira cirúrgica e sistemática”, observou.
“Temos que olhar para o futuro e indagar se vamos ou não aproveitar a brecha histórica que construímos com a vitória de Lula e, finalmente, harmonizar a legislação brasileira com o artigo 207 da Constituição Federal, assegurando o autogoverno das universidades, que é uma condição necessária para a liberdade de cátedra”, acrescentou.
Antonio Alves Neto, conhecido como Toninho, diretor da Fasubra também compôs a mesa e falou na sequência. Em sua exposição, abordou o recente obscurantismo e a guerra cultural que se acirraram durante os últimos quatro anos. Ele refletiu também que a universidade no Brasil surgiu para servir a uma casta social que controla o país. Apenas recentemente os filhos e filhas da classe trabalhadora conseguiram maior condição de acesso às universidades públicas.
“Discutir universidade pública, democracia e autonomia é fazer uma disputa de queda de braço. Em alguns momentos, os movimentos conseguem avançar. Em outros, aqueles que detêm o poder conseguem reverter o processo”, afirmou.
Toninho resgatou a luta contra o Future-se, programa do governo anterior foi derrubado após muita mobilização. Segundo ele, o projeto fazia parte do modelo de universidade e educação pública que o bolsonarismo aliado à visão neoliberal buscaram implementar no país.
“Nomear interventores é o fim de um processo que teve como início o golpe à presidenta Dilma, e que demonstrou a fragilidade da autonomia universitária e da nossa democracia”, refletiu o diretor da Fasubra.
Segundo Mario Mariano Ruiz, a situação nas universidades sob intervenção demonstra que, mesmo após a derrota de Bolsonaro, ainda não foi possível derrotar o bolsonarismo nas universidades. “A posição do MEC em não retirar os interventores acaba por permitir que as perseguições a docentes continuem, assim como os ataques aos conselhos universitários, que, dentre diversas outras ações, estão destruindo o ambiente das nossas instituições”, destacou.
O diretor do ANDES-SN destacou que a posição trazida da base é de que a mobilização deve continuar. Diversas seções sindicais estão enviando ao Sindicato Nacional dossiês locais sobre as situações relatadas no encontro, que serão sistematizados e, posteriormente, publicizados.
“Finalizamos [o encontro] com uma mesa em que o professor Roberto Leher e o companheiro Toninho da Fasubra reforçaram a necessidade de ampliar o debate com o conjunto da classe trabalhadora sobre um projeto de universidade radicalmente democrático que enfrente a lógica do Capital e que aprofunde seu caráter popular, antirracista, antimachista, antilgbtfóbico e anticapacitista”, concluiu Mariano.