O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou uma nova ação civil pública para que 37 ex-agentes da ditadura sejam responsabilizados, na esfera cível, pela execução de Carlos Marighella, um dos mais destacados opositores do regime empresarial-militar, em 1969. O MPF pede, entre outras condenações, que os envolvidos no episódio percam aposentadorias, restituam gastos do Estado brasileiro com indenizações concedidas a familiares da vítima e paguem compensações financeiras por danos morais coletivos que a repressão política causou à sociedade. No caso de réus já falecidos, os herdeiros e as herdeiras deverão arcar com as reparações.
Vários dos ex-agentes já figuram em outras duas ações civis públicas, que o MPF ajuizou em março e agosto, relacionadas a casos de prisão ilegal, tortura, morte e desaparecimento forçado de outros 34 militantes políticos perseguidos na ditadura. Parte dos envolvidos no assassinato de Marighella também foi alvo de uma denúncia protocolada em maio, com pedidos de condenação penal por homicídio qualificado e falsidade ideológica.
Além da responsabilização pessoal dos ex-agentes e das sanções financeiras, a nova ação busca o cumprimento de diversas medidas de preservação do passado e esclarecimento dos fatos ocorridos na ditadura. Para isso, o MPF quer que o estado de São Paulo e a União, também réus, sejam obrigados a realizar um ato público de desagravo à memória de Marighella e a incluir informações sobre o caso em espaços de memória dedicados ao período.
Marighella dirigia a Aliança Libertadora Nacional (ALN), organização de resistência armada à ditadura, e era considerado o “inimigo público número 1” do regime empresarial-militar. Ele foi assassinado na capital paulista, em uma operação arquitetada pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), em 4 de novembro de 1969. Naquela noite, as equipes da unidade armaram uma emboscada para o militante, o surpreenderam desarmado e, ainda que pudessem levá-lo preso, executaram-no.
Os réus
Um dos réus é o ex-delegado Sérgio Paranhos Fleury, que comandou a operação. Além dele, também é citado o ex-integrante do Instituto Médico Legal (IML), Abeylard de Queiroz Orsini. Ele foi um dos autores do laudo necroscópico que omitiu as verdadeiras circunstâncias da morte de Marighella para endossar a versão oficial de que o militante havia reagido à prisão. O documento deixou de mencionar sinais da execução sumária, como evidências da curta distância dos tiros e lesões que indicavam a tentativa da vítima de se proteger dos disparos. A prática de forjar laudos era comum no IML de São Paulo, unidade que colaborou ativamente com os órgãos de repressão durante toda a ditadura para encobrir crimes e eximir os agentes de responsabilidade.
Crime contra a humanidade
Os envolvidos no assassinato de Marighella não podem ser beneficiados por prescrição – quando, após um prazo definido, não é mais possível exigir um direito na Justiça – nem anistia, uma vez que o episódio é considerado crime contra a humanidade por ter ocorrido em um contexto de ataque sistemático e generalizado contra a população civil. Além disso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já definiu que demandas indenizatórias relacionadas a violações da ditadura são imunes a prescrições. A Constituição também afasta prazos prescricionais para ações de ressarcimento ao patrimônio público, como é o caso de parte dos pedidos do MPF.
A imprescritibilidade dos atos de violação a direitos humanos foi fixada ainda em duas condenações ao Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). As determinações também proíbem o Judiciário brasileiro de barrar processos com base na Lei da Anistia (Lei nº 6.683/79), que, segundo a Corte, não possui efeitos jurídicos por constituir um instrumento de autoperdão a membros do aparato repressivo. O país submeteu-se voluntariamente à jurisdição da CIDH e, por isso, é obrigado a cumprir as sentenças.
A procuradora da República Ana Letícia Absy, autora da ação do MPF, reitera que o contexto de aprovação da Lei da Anistia anula completamente seu valor, apesar de a norma ainda ser evocada para impedir investigações e condenações. “A lei foi criada apenas para privilegiar e beneficiar os que se encontravam no poder, buscando exatamente atingir o escopo ainda persistente: não haver a punição dos crimes ou ressarcimento dos atos praticados pelos agentes estatais, quando estes saíssem do poder. E até a presente data, infelizmente, está plenamente atingindo seus objetivos”, destacou Absy.
Fonte: MPF/SP, com edição do ANDES-SN