O racismo estrutural que perpetua desigualdade entre grupos raciais no país reflete sobremaneira nas políticas públicas de segurança e carcerária. Levantamento inédito realizado pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro mostra que oito em cada dez presos em flagrante no estado se declaram pretos ou pardos. Além disso, essa parcela da população sofre mais agressão (40% ante 34,5% de brancos) e, também, tem mais dificuldade de conseguir liberdade provisória (27,4% contra 30,8% de brancos).
A Defensoria analisou o perfil dos entrevistados em audiências de custódia de três centrais fluminenses (Benfica, Volta Redonda e Campos) realizadas entre os meses de setembro de 2017 e setembro de 2019. Dos 23.497 homens e mulheres conduzidos às audiências, cerca de 80% declararam-se pretas ou pardas.
A audiência de custódia é um instrumento processual que determina que todo preso capturado em flagrante deve ser levado à presença de uma autoridade judicial em até 24 horas. O juiz avalia a legalidade, a necessidade e a adequação da continuidade da prisão ou da eventual concessão de liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares. Não é julgado, neste momento, o crime em si, apenas o ato da detenção.
Violência no momento da prisão
Cerca de 40% dos presos em flagrante relatou ter sofrido agressões por ocasião da prisão, sendo 60% delas praticadas por policiais militares. No total, foram 3.380 relatos referentes a policiais. Populares teriam sido responsáveis por 30% (1.679 relatos) dos maus tratos e/ou tortura. Entre as mulheres, 22% disseram ter sofrido agressões. Dessas, 71,8% das mulheres são negras e 23,7% são brancas.
"O altíssimo índice de agressões atribuídas aos policiais militares não surpreende, mas preocupa, especialmente quando cotejado com o baixíssimo número de casos em que houve o relaxamento de prisões ilegais. O alto índice de relatos de agressões atribuídas a populares confirma, por sua vez, que a cultura do linchamento e a ideia de se fazer justiça com as próprias mãos, própria da barbárie, ainda está muito arraigada na sociedade. Isso precisa ser desconstruído", destacou a coordenadora do Núcleo de Audiências de Custódia da Defensoria, Caroline Tassara.
Perfil
Das 23.497 pessoas custodiadas levadas às audiências, 93,6% são homens cisgênero, 89% têm entre 18 e 40 anos, 77,4% se autodeclararam pretos ou pardos, 64,3% cursaram apenas o ensino fundamental e 90,9% disseram trabalhar antes de serem presos, mesmo que informalmente. Dos que trabalhavam e tinham renda, 61,7% recebiam até um salário mínimo. Do total de casos com informação, 66,3% disseram ter filhos.
Entre as mulheres, 1.283 eram cisgênero, o equivalente a 6% dos casos com informação. 74,8% das mulheres entrevistadas são pretas ou pardas, 81,7% têm entre 18 e 40 anos, 60,6% cursaram apenas o ensino fundamental, 79,5% disseram trabalhar antes de terem sido presas e 97% não estavam inseridas no mercado formal de trabalho. Das que trabalhavam e tinham renda, 72,7% recebiam até um salário mínimo. 80% das mulheres indicaram ter filhos.
Entre os custodiados acompanhados no período pela Defensoria, 54 são homens trans e 38 mulheres trans. Em 2.086 casos, a ficha da entrevista não trazia a identificação de gênero.
A pesquisa revelou ainda que somente 21% dos presos em flagrante passaram pelo sistema socioeducativo na adolescência e 26,2% disseram ter condenação anterior.
Crimes e liberdade provisória
Quanto ao delito ou crime atribuído ao preso em flagrante, mais de 80% dos casos analisados foram presos sob acusação de furto, roubo ou com base na Lei de Drogas. 37% dos custodiados foram indiciados por crimes da Lei de Drogas. Outros 26% foram acusados de ter cometido roubo e 19,3% furto, de forma isolada ou em concurso com outros delitos.
Apenas uma em cada três pessoas consegue liberdade provisória ou relaxamento da prisão. A frequência com que a liberdade provisória foi concedida ou negada sofre alteração conforme o tipo penal. Em 65,6% dos casos de furto, houve concessão de liberdade provisória. Nos casos de roubo esse percentual é de 7%. Entre os presos em flagrante enquadrados na Lei de Drogas, 19,5%.
Para Ricardo André de Souza, subcoordenador de Defesa Criminal, a política de encarceramento se apoia na Lei de Drogas, mais especificamente nos flagrantes de tráfico, o que ficou ainda mais claro durante a pandemia, quando foram muitas as negativas a pedidos de habeas corpus ajuizados em favor de presos provisórios. "A política de drogas é a espinha dorsal da política criminal brasileira e os dados relacionados ao período de pandemia o demonstram. É fundamental que o debate público possa ser iluminado por dados como os apresentados nessa pesquisa, que conta com um enorme banco de dados, talvez único no mundo no que diz respeito às audiências de custódia", ressalta Ricardo André de Souza.
A Lei de Drogas foi instituída em 2006 como uma política nacional contras as drogas, prevendo um sistema de orientação aos Estados e a integração de suas políticas públicas. A lei distingue a maneira de lidar com usuários e traficantes. Durante os quase 15 anos da sua aplicabilidade, a lei tem sido rechaçada por advogados, entidades e militantes dos Direitos Humanos por conta dos seus critérios subjetivos ao diferenciar traficantes e usuários. Como não há uma quantidade especificada na lei, é o delegado quem decide, o que tem aumentado, segundo especialistas, o encarceramento de jovens pobres e negros com a justificativa de "combater as drogas".
Já para as mulheres, o crime mais imputado é o furto (36,6%), seguido de crimes da Lei de Drogas (35,6%) e do roubo (13,9%). Mais da metade das mulheres presas em flagrante responderão à Justiça em liberdade. A frequência é maior do que entre os homens, que é de 30%. 656 mulheres receberam liberdade provisória e, em 12 casos, a prisão foi relaxada. 36 tiveram direito à prisão domiciliar. 73,4% das prisões domiciliares concedidas nas centrais de audiências de custódia do Rio contemplaram mulheres.
Nos casos com informação quanto a filhos, das 80% que afirmaram ter sido mãe pelo menos uma vez, 155 mulheres afirmaram ter filhos de até 12 anos de idade, dentre as quais 90 receberam a liberdade provisória (58,1%), 10 a prisão domiciliar (6,4%) e duas tiveram como resultado o relaxamento da prisão em flagrante (1,3%).
População carcerária
Dados do Infopen, sistema de informações estatísticas do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), apontaram que em 2019 existiam 773.151 mil pessoas presas no Brasil, o que faz do país o terceiro com a maior população carcerária do mundo, atrás dos Estados Unidos e da China. Os dados mostram um crescimento dessa população de 3,89% em relação ao apurado em 2018. O país também possui um dos maiores números de pessoas presas sem condenação. São 253.963 mil presos provisórios, o que corresponde a 33,47% da população carcerária nacional.
Acesse a pesquisa na íntegra aqui
*Com informações da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro