No segundo dia do VII Seminário Estado e Educação do ANDES-SN, sábado (11), as e os 163 participantes foram recebidos e recebidas pelo canto e dança do grupo Guardiãs da Ciranda. O projeto, fundado em 2017, é composto por alunas da escola comunitária do bairro Bom Jardim.
A relação da arte e cultura com a luta em defesa da educação e com o tema do Seminário foi ressaltada por Helber Rocha Rufino, coordenador do grupo. “Valorizar acultura popular no ambiente escolar se faz necessário especialmente nesse ambiente de mercantilização da educação, pois a cultura leva uma percepção crítica às escolas e comunidades periféricas e isso contribui para a luta contra o projeto do Capital para a Educação”, destacou.
10 anos de Lei das Cotas
A segunda mesa de debate do seminário, e primeira desse sábado, abordou o tema "Defesa das Cotas - 10 anos da Política de Cotas”, com as explanações de Giselle Maria, do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), e de Arilson dos Santos Gomes, da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). Ambos explicitaram o racismo estrutural que permeia o projeto do Capital para a Educação e a necessidade não só de se defender a Lei de Cotas, como de avançar nessa e outras políticas afirmativas de reparação e justiça.
A professora do IFRS fez um resgate da adoção da política de cotas para estudantes negras e negros. Segundo ela, a ideia de que a política de Cotas era esmola e nivelaria as universidades por baixo era amplamente difundida dentro das instituições. Tanto que, após a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) adotar a política de cotas, demorou quase 10 anos para que uma legislação fosse aprovada para implementação de Cotas para ingresso nas universidades federais, a Lei 12.711 de 2012.
Giselle lembrou que a maioria das Universidades federais começou efetivamente com sistemas de cotas a partir de 2016. Logo, ainda é muito cedo para se mensurar seus impactos. “Nossos cursos de prestigio social continuam brancos como leite”, afirmou.
“Eu vejo, para além de reparação, as cotas como uma questão de Justiça”, ressaltou. “O sistema de cotas é justiça, porque nosso sistema social é essencialmente injusto para as minorias em nosso país, especialmente pessoas negras”, acrescentou.
Ela destacou, ainda, que não se pode afastar as universidades e institutos federais dos outros aspectos da nossa sociedade e que, somente quando os índices de assassinato no Brasil não forem mais de 72% de pessoas pretas, será possível falar sobre a revisão da política de cotas.
Dialogando com o tema apresentado no dia anterior, Giselle lembrou que o Novo Ensino Médio é um projeto racista, pois é uma tentativa renovada de não ter permitir o acesso de estudantes negros e negras às universidades públicas, apesar das cotas.
“O projeto é um só. O projeto do capital é necessariamente um projeto racista. Não podemos perder isso de vista, senão isso deixa o debate raso. Esse racismo permanece na nossa sociedade, nas nossas instituições, nos nossos sindicatos, e faz, o tempo todo, a acusação de que estamos em lugares onde não deveríamos estar. Temos uma estrutura da nossa sociedade que a organiza a partir de fatores raciais e é, por isso, que as cotas devem permanecer”, reforçou.
Arilson dos Santos Gomes reforçou esse argumento, abordando ainda a expulsão de estudantes negras e negros das instituições públicas de ensino, pois, apesar da Lei de Cotas ampliar o acesso, não garante a permanência.
O professor da Unilab fez um resgate histórico da luta e protagonismo dos movimentos negros, de parlamentares e intelectuais negras e negros para se avançar até o reconhecimento, ainda que tardio e superficial, do Brasil como país racista e a conquista de políticas afirmativas, como a Lei de Cotas.
“Toda identidade é construída e inventada. Não é natural. O letramento racial é importante para avaliar política de Cotas. Nós temos que nos reeducar para aprender questões raciais. Precisamos aprender a desaprender”, afirmou.
O docente ressaltou a importância de aperfeiçoar os mecanismos de heteroidentificação para fortalecer as cotas. Segundo ele, de acordo com o relatório da Associação Brasileira de Pós Graduandos Negros e Negras, em grande parte das instituições, as comissões de heteroidentificação só começaram a atuar a partir de 2016.
Arilson reforçou a necessidade de manutenção e aperfeiçoamento das políticas de cotas, com base na proposta de sua permanência por pelo menos mais 50 anos, com gatilhos de revisão a cada 5 anos, com controle social. Ele lembrou que essa disputa faz parte da compreensão do papel de professores e professoras enquanto sujeitos que pensam um Estado, um país e uma Educação melhores e mais enegrecidos. “Essa será uma disputa acirrada”, ressaltou.
Militarização das Escolas
O debate da tarde foi retomado com a mesa "Militarização e a ofensiva neoliberal nas escolas", com Luisa Colombo, do Colégio Pedro II do Rio de Janeiro, e Fernando Lacerda, da Universidade Federal do Goiás (UFG). Ambos trouxeram dados da ascensão da militarização nas escolas públicas e pontuaram que o modelo é uma das manifestações do atual projeto do Capital para a Educação, aliado ao “Escola Sem partido”, à educação domiciliar, entre outros.
Fernando Lacerda destacou que a militarização das escolas tem relação com um complexo processo de mercantilização e precarização da educação. Segundo o docente, o processo antecede a gestão de Jair Bolsonaro, mas foi intensificado com a criação do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), em 2019.
Ele citou duas grandes experiências de militarização das escolas, entre 2013 e 2019: em Goiás, sob o governo de Marconi Perillo (PSDB) e na Bahia, durante a gestão de Rui Costa (PT), atual ministro da Casa Civil. Lacerda contou que em Goiás, documentos oficiais apontam a militarização das escolas como um mecanismo para diminuir a violência nas escolas, trazer qualidade para a educação pública, introduzir valores morais e cívicos e disciplina acabando com a evasão e o baixo desempenho. O modelo é usado também como mecanismo de ofensiva política contra movimento docente e estudantil.
Porém, o que se teve, conforme o professor da UFG, foi um aumento expressivo de casos de assédio e a instauração automática do projeto “Escola sem Partido” no cotidiano dos professores e das professoras.
“Esse processo tem associação com o Novo Ensino Médio, com a BNCC e com o ‘Escola Sem Partido’. Por isso, é interessante que o nosso sindicato venha articulando o debate contra a militarização das escolas com a luta contra o projeto do Capital para a Educação, pois estão diretamente conectados”, ressaltou.
Luisa Colombo alertou que a militarização das escolas integra um processo mais amplo de privatização ampliada da educação e de doutrinação, junto com outros projetos como a entrega de vouchers para creches e escolas do ensino básico e a educação domiciliar. Esta última, segundo a professora, é uma proposta que avança em diferentes casas legislativas nos estados e municípios.
“Essas propostas retiram da classe trabalhadora, em especial do povo negro, o direito à educação escolar. A gente não consegue mensurar, ainda, a gravidade do que isso representaria em relação à retirada de outros direitos fundamentais. Precisamos estar muito atentas, porque a defesa dessa política segue em curso”, avisou.
Luisa acrescentou que a escola militarizada é introduzida, com argumentos de princípios éticos, morais e religiosos, em locais onde não há interesse do mercado em oferecer a Educação como mercadoria. “Todas essas estratégias de modelagem do comportamento de crianças e jovens vão ao encontro dos interesses de organizações como Banco Mundial e OCDE”, ressaltou.
Ela acrescentou que essas escolas estão moldando futuros trabalhadores e trabalhadoras. “Há uma modelagem do comportamento, para além do controle psicofísico e conformação ideológica. É um processo de domesticação do aluno”, afirmou.
A docente lembrou que, após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, o Pecim foi extinto, porém as 202 escolas que aderiram ao programa não foram desmilitarizadas. “A gente precisa avançar na reflexão sobre o que significa materialmente e ideologicamente a militarização das escolas. E em como vamos lutar pela desmilitarização dessas escolas. Não é possível naturalizar essa situação. Não podemos permitir que isso continue acontecendo”, disse.
Luta respira arte
No intervalo entre a terceira e a quarta mesa, a estudantes da Uece, Vitória Cristiny recitou uma poesia autoral, escrita para o evento.
...“e quanto mais de nós ficarão
e quantas outras se calarão
tendo que rasgar o peito pra ter acesso à educação
tendo sua trajetória banalizada entendendo que a educação vem da troca entre o capital e o patrão
quantos de nós já sacrificamos pra hoje tá aqui
vinda de escola pública eu sempre sabia que o inverno era o tempo de não ir pra escola
a gente ocupou aquele lugar ali
sendo por muitas vezes julgada, massacrada, violentada, mas nosso peito pedia luta pra um dia a justiça existir”, diz um trecho do poema.
Leia aqui o texto completo.
Plataformização da Educação e EAD
A última mesa de debates do sábado teve como tema “EaD, Plataformização, ERE, Ensino Híbrido", com as docentes Amanda Moreira, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), e Michele Schultz, da Universidade de São Paulo (USP).
As professoras trataram da intensificação do trabalho, especialmente pós-pandemia, com invasão do espaço doméstico pelas atividades da docência, a plataformização do trabalho, além da mercantilização de dados e informações pessoais de docentes e estudantes.
Para Amanda, as transformações no mundo do trabalho e a plataformização do trabalho unem o que há de mais perverso da ideologia neoliberal como o processo de dataficação da vida, com a produção de lucro e geração de valor a partir do que os indivíduos produzem enquanto dados e informação.
Ela apresentou as diferenças do processo de plataformização e pontuou os impactos dessa mudança para a vida e atividade docente, como a diluição da jornada de trabalho, invasão do trabalho na vida pessoal, a individualização dos trabalhadores e das trabalhadoras, a adaptação forçada ao ambiente digital, entre outros.
“O professor sempre levou trabalho pra casa. Mas isso se dava, de certa maneira, de forma sazonal. Agora, isso é cotidiano, porque o trabalho nos convoca e não o contrário. Se pegarmos o celular, o tempo todo vai ter convocação. E a gente vai ter que dar respostas, sem intervalos de tempo, que são fundamentais para organizar o nosso cérebro”, alertou.
Amanda ressaltou que a plataformização agudizou o processo de produtivismo acadêmico, que já estava em curso em curso desde 1990. Segundo a docente, é fundamental combater esse modelo, que está adoecendo as e os docentes e reivindicar o direito à desconexão. “Precisamos promover uma autorreflexão da classe trabalhadora em relação ao seu contexto de trabalho”, disse.
Michele Schultz abordou o uso da tecnologia como método de ensino e seus impactos na educação e a expansão das plataformas digitais como meio de ensino. Segundo a professora da USP, há uma propagação das ditas novas tecnologias de ensino, que promovem o aligeiramento e a mercantilização dos processos de ensino, com total rendição ao capitalismo tecnológico. Ela abordou o uso das plataformas de ensino das empresas Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft, que são usadas pela ampla maioria das universidades públicas.
“Isso transforma educação em produto, e permite acesso irrestrito aos dados de seus usuários. Universidades públicas concederam [a essas empresas] apropriação de dados pelos setores privados, transformando direito em serviço, monetizando dados e informações”, afirmou.
Ela destacou ainda os impactos do processo de digitalização da Educação e ressaltou que o ANDES-SN entende que a qualidade do ensino e educação se dá, entre outros aspectos, pela construção coletiva, unindo toda a comunidade, o que só pode ser dar no ambiente presencial.
“É de interesse do Capital dificultar a nossa capacidade de organização e mobilização, por isso estimula a individualização. Além disso, a tecnologia faz com que tudo seja urgência, o que faz com que percamos a capacidade reflexiva sobre os temas”, disse.
Michele afirmou ainda que é importante avançar no debate de uma internet popular, de uma tecnologia desvinculada do neoliberalismo e do setor privado como alternativa aos modelos atuais. “Lutar contra o uso irrestrito dessa modalidade de ensino por meio de plataformas privadas é lutar contra o projeto do Capital. Não podemos naturalizar esse modelo. Temos que resistir”, concluiu.
O VII Seminário Estado e Educação acontece de sexta a domingo (10 a 12), na Universidade Estadual do Ceará (Uece), sob o tema “O projeto do Capital para a Educação: como enfrentá-lo?”.
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