Os Guarani e Kaiowá da retomada Aratikuty, em Dourados (MS), denunciam que foram alvo de um novo ataque de seguranças privados na noite da última quinta-feira (3). Segundo relatos das lideranças, por volta das 21 horas, seguranças de fazendeiros da região realizaram disparos de rojões e armas de fogo contra a retomada, além de ameaçar e intimidar as famílias.
Conforme as lideranças, o ataque durou cerca de meia hora e deixou um indígena ferido de raspão por disparo de arma de fogo. Os seguranças, que chegaram ao local em uma camionete e três carros pequenos, apontaram refletores contra os indígenas e dispararam por cima das casas.
Pela manhã, segundo o relato dos Kaiowá, os seguranças privados contaram com o apoio de policiais para escoltar um trator que foi realizar a limpeza de uma área de terra, próxima ao local onde ficam as casas das famílias indígenas. Os seguranças aproveitaram a ocasião para ameaçar os Guarani e Kaiowá, afirmando que voltariam para queimar suas casas. À noite, retornaram.
“Os seguranças privados deram alguns tiros por cima, de rojões e de arma de fogo. Algumas famílias, que não estavam dormindo nesse momento, foram lá. Fizeram aquela pressão, ameaças, focando os faróis nas famílias”, relata Awa Jeguaka Poty Rendy, uma das lideranças da retomada.
“Os seguranças têm tudo, porque os fazendeiros colocam na mão deles. Câmeras de alta qualidade, faróis fortes, de alta potência. Eles colocam esses faróis nos carros e às vezes usam na mão, iluminando as famílias, os barracos”, prossegue a liderança.
Os indígenas registraram o momento em que os seguranças privados estavam no local. No vídeo, gravado na escuridão da noite, é possível ver os faróis à distância e ouvir a voz de uma mulher, que denuncia: “Eles estão atirando em nós. Eu tenho uma criança aqui comigo. Fala, nenê, como que a gente está sofrendo na mão desses ‘guarita’ aí”.
Tensão e ameaças
O ataque foi o primeiro registrado, em 2022, nas retomadas na região limítrofe à reserva indígena de Dourados. Ainda que não tenha deixado feridos e que a promessa de queima de casas não tenha sido cumprida, a tensão entre os indígenas da região – que sofreram diversos ataques nos últimos anos – continua. “Para a comunidade, essa situação já virou rotina”, conta Awa Jeguaka Poty Rendy. “A comunidade se acostumou com o barulho de fogos, de tiro”, acrescenta.
“Com eles, não tem conversa. Eles chegam, iluminam e metem bala em nós. Nós respeitamos o limite que o delegado falou para nós, mas eles não. Passam o trator, dão tiro nos moradores, ameaçam queimar os barracos”, relata outra liderança, não identificada por razões de segurança.
“Eles mexem com minha esposa, com minha sobrinha. Sofremos muitos abusos e humilhações, xingam nós de bugres, sujos. E quando eles fazem isso, chamam a polícia, que fica só do lado deles e não vai nem nos perguntar o que está acontecendo”, denuncia o Guarani Kaiowá.
As lideranças indígenas da região também manifestam preocupação com a possibilidade de novos ataques e com boatos que circulam na região, de que os fazendeiros estariam buscando apoio do governo para realizar uma grande operação de repressão contra as retomadas Guarani e Kaiowá.
“Nos preocupa o fato de que os seguranças estão recebendo apoio de forças policiais para ameaçar as comunidades indígenas, e mais ainda as informações que têm circulado na região, de que os fazendeiros estariam preparando uma grande operação contra as retomadas na semana que vem, com apoio do Estado e de forças policiais, com a desculpa de permitir que os fazendeiros façam colheita na área”, afirma Eliseu Lopes, liderança da Aty Guasu – grande assembleia Guarani e Kaiowá.
“O Estado precisa tomar providências para demarcar e garantir a posse de nossas terras tradicionais, ele não pode apoiar a violência contra nosso povo, que já é atacado dia e noite. Se isso acontecer, vamos denunciar esse absurdo em todas as instâncias possíveis”, critica a liderança.
Histórico: fogo, “caveirão” e violência
O tekoha – lugar onde se é – Aratikuty é uma das retomadas que ficam próximas aos atuais limites da reserva indígena de Dourados, área reivindicada pelos Guarani e Kaiowá como parte de seu território tradicional. As retomadas da região vivem um contexto de violência extrema e constante, com ataques contínuos de seguranças privados das propriedades da região.
Nos últimos anos, a região se notabilizou pela constância e pela violência dos ataques contra os indígenas e também pelo uso de um trator blindado e modificado com chapas de metal, utilizado para atacar os indígenas e derrubar os barracos das retomadas. O veículo foi apelidado pelos Guarani e Kaiowá de “caveirão” e, segundo suas denúncias, também foi utilizado como plataforma de tiro contra os Guarani e Kaiowá.
Os ataques contra os indígenas no local são constantes e se intensificaram a partir de outubro de 2018. Na noite em que foi confirmada a vitória do atual presidente da República, no dia 28 daquele mês, 15 Guarani e Kaiowá foram feridos por disparos feitos com balas de borracha e de gude. Desde então, as ações violentas já deixaram inúmeros feridos por projéteis de borracha e armas de fogo, muitos com gravidade.
Recentemente, em setembro de 2021, seguranças privados chegaram a queimar uma moradia Guarani Kaiowá à luz do dia, no tekoha Avae’te. Em novembro, os indígenas sofreram um novo ataque no mesmo tekoha, com uso de bombas de efeito moral, balas de borracha, nova queima de casas e pertences e pulverização de agrotóxico.
O Ministério Público Federal (MPF) investiga os conflitos no local e os ataques contra as diferentes retomadas da região desde 2019. Segundo o órgão, os processos tramitam sob sigilo de justiça.
A violência a que os indígenas estão submetidos na região está diretamente ligada ao contexto da reserva de Dourados, onde cerca de 20 mil indígenas vivem confinados em apenas 3,4 mil hectares. Além de reivindicar áreas no entorno da reserva como parte de seu território de ocupação tradicional, os indígenas denunciam a apropriação privada de partes da área da reserva, que passou por sucessivas reduções desde sua criação, no início do século XX.
Fonte: Cimi, com edição do ANDES-SN
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